Para a análise da fotografia, Kossoy me indicou o caminho a percorrer. Era importante saber a história do documento e a do fotógrafo. Colocá-lo no seu espaço e tempo para reconhecermos e entendermos suas intenções. Mas, como disse anteriormente, as emoções sentidas só fizeram sentido com a Câmara Clara de Barthes, e é através dele que fiz a leitura.
Para Barthes, reconhecer o studium é encontrar as intenções do fotógrafo, compreendê-las, porém, segundo as próprias imagens mentais do spectator.
O studium é o quadro histórico, o assunto no qual o fotógrafo investiu, tem conotação cultural, resulta num interesse amplo e eu posso ou não me identificar com ele. Por ser amplo, é revestido de generalidade e, assim, pode ser percebido do mesmo modo por um grupo de pessoas ou um corpo social. A cultura nos liga a sentimentos e valores dados pela sociedade, em determinado espaço e tempo. São emoções e sentimentos trazidos pela interação humana e projetados na interpretação da fotografia.
O studium, assim, é codificado, com significação elaborada por uma sociedade, na história, podendo ter a mesma interpretação por diferentes pessoas, que convivem naquela sociedade, naquele espaço e tempo.
Ao olharmos a fotografia, vemos a criança fraca, esquálida. Logo nos reportamos a uma das guerras civis, africanas, onde inúmeras pessoas morrem de doença e fome. Grande número de pessoas conhece as imagens, no passado, publicadas em várias ocasiões.
Enquanto o studium é cultural, o mesmo não acontece com o punctum. Este é pontual, pessoal, subjetivo.
O punctum, para mim, é a ave. Ela me fere, me transtorna. Um detalhe que não foi colocado lá, intencionalmente, ela está no campo do fotógrafo. Diz que ele estava lá, não podia deixar de fotografar o objeto parcial ao mesmo tempo em que o total, pois ele fazia parte da cena. A vidência do fotógrafo não consiste em ver, mas em estar lá. O punctum, a ave, faz com que eu pense imediatamente numa história, em indagações, para além daquilo que eu vejo: o que aconteceu depois.
O studium pode servir a várias pessoas. O punctum a uma ou poucas. Portanto, é difícil falar dele. Tem significado para alguém, cujo código pessoal vem de sua história particular. Falar do punctum é expor-se, pois, necessariamente, é falar de sentimentos pessoais. O outro entende, mas não compartilha, então, ao falar do punctum, a emoção desanda, perde-se a graça.
Para Barthes, a essência da fotografia é o Referente Fotográfico - não a coisa facultativamente real, mas a coisa necessariamente real. O que nos impressiona é a certeza de que o fato existiu no passado, uma certeza no Tempo. É uma cena de guerra que foi dada sem mediação, foi construída por inteiro. Ao olhá-la, vejo o urubu esperando a morte da menina e imediatamente penso em alguém que impeça isso, e, então, sinto a presença do fotógrafo. Sei que ele não deixou que a ave, seguindo o processo da natureza, conseguisse seu intento. A cena transcende a imagem fotográfica e é composta, então, de três elementos: o fotógrafo não é, somente, o mediador, o intermediário. A certeza de que o fato existiu no passado e a cena mostrando a solidão da criança, fizeram, da presença do fotógrafo, a salvação da menina. Penso que essa foi a razão de todos quererem saber da atitude do fotógrafo, depois de tirada a fotografia.
Este é o noema da fotografia, "isso foi", aconteceu: estava vivo, mas não está mais. O noema é intenso, pois o que vejo é a morte prenunciada: a menina morrendo de inanição. Ela me certifica que a guerra existiu, que milhões de pessoas morreram, e foi neste momento histórico, contemporâneo. E isso me foi dado não por um testemunho, mas por uma prova, conforme Barthes, "a-prova-segundo-são-tomé".
Na fotografia há dupla determinação: de realidade e de passado - a menina estava lá, e não existe mais. Há a morte dada pela essência da fotografia, o punctum, não na forma, mas no Tempo. Porém, a morte me é dada, também, pelo futuro (da menina) e pelo passado, atestado pela ave. Triplamente morte, a fotografia se torna redundante, prolixa.
Olho e me retenho nela, imóvel, angustiada. Choro a tristeza do mundo: nenhuma cultura vem me ajudar a falar desse sofrimento - nada, nela, pode transformar meu pesar em luto.
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