quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O trauma na fotografia

Fotos com imagens fortes são traumáticas. Em A mensagem fotográfica, Barthes questiona a existência de uma mensagem fotográfica puramente denotada, algo aquém da linguagem, e conclui que, se existe, podemos encontrá-la nas imagens traumáticas: o trauma é precisamente aquilo que interrompe a linguagem e bloqueia a significação.
Porém, para ocorrer o trauma, é preciso que aconteça a compreensão imediata - não mediada - da mensagem: "O olhar reúne os elementos em um todo para perceber a totalidade. Se a figura de conjunto é pequena, um único olhar permitirá reconhecer esta totalidade, apreendendo sua essência." (Piaget, 2000:19).
Para Piaget (2000:19,302), faltando os instrumentos semióticos (linguagem etc.) a representação é dificilmente concebível. A representação de conjunto supõe instrumentos simbólicos.
Conhecemos e reconhecemos a fome, a doença, a miséria, a morte, assim como reconhecemos as características da ave de rapina. Sabemos dos seus atributos, entendemos as unidades elementares que constituem a totalidade organizada, identificando, na representação, o conteúdo dessas idéias.
Compreendemos a sua significação. A imagem reconhecida é agressiva, pontiaguda e nos fere de pronto. Dessa maneira é que o significado, o conotado, é apreendido de forma rápida, contundente. E isso nos conturba de imediato. É quando a imagem fotográfica tem, então, todo o significado do mundo.

O discurso

A mensagem fotográfica é conotada: no nível da produção e no da recepção da imagem. Como nos diz Barthes, em A mensagem fotográfica: "A fotografia jornalística é um objeto trabalhado, escolhido, composto, construído, tratado segundo normas profissionais, estéticas ou ideológicas; por outro lado, não é apenas recebida, é lida, vinculada, pelo público que a consome, a signos, o que pressupõe código (de conotação). São estes códigos que devem ser estabelecidos".
Se é mensagem conotada, tem dois planos: o de expressão e o de conteúdo. A imagem, no nível do plano de expressão, tem , como falamos, apenas dois elementos: a criança e a ave. Porém, esses elementos, cada um deles, são fortes em si mesmos.
Numa tentativa de deciframento, isolei as unidades de articulação da imagem, no sentido de verificar a variação das leituras, com a modificação da forma. O fotógrafo João Silva já tinha fotografado a menina sozinha, porém, não tinha dado importância à foto.
O abutre é carnívoro - alimenta-se habitualmente de carniça. Essa é a proposição que retiro da imagem, considerando a ave isoladamente. Além disso, posso inferir que olha para alguma coisa em especial ou fazer considerações dela com o ambiente, pois não há outro elemento de articulação presente; posso ter o saber de sua função ecológica no mundo: limpa o meio ambiente de restos putrefatos, é de sua natureza. Saberes aprendidos que fazem parte da minha história.
Ao olhar a imagem em que há apenas a menina, o que vem à mente é que a criança está morrendo. A imagem da menina, só, sem a ave, é forte: remete-nos à fome, à miséria, à solidão. O leitor desenvolve, subjetivamente, uma empatia, um sentir pena, porém, no plano social, se distancia, justificando a cena como outras realidades, abstraindo as noções de tempo e espaço, criando uma idéia de intemporalidade e de qualquer lugar (Koury, 1995: 76).
Ao olhar a fotografia, reconheço a ave e o estado da criança, e concluo: A ave espera a criança morrer, pressentindo a morte. A relação entre eles estabelece uma sintaxe, que é lida de pronto, de imediato. A presença da ave, por outro lado, reforça o sentimento de solidão, de não ter alguém para cuidar, do descaso humano. Depois, me pergunto: O que, na criança, indica a proximidade da morte para a ave? De onde vem o seu saber?
Cada elemento é portador de um significado, porém, a conclusão só é possível dentro do contexto da imagem, em que estabelecemos a relação dos conteúdos inerentes às unidades. Não se trata de uma soma de valores, mas de uma interrelação de forças significadoras. Santaella (2001: 50) argumenta que o valor funcional dos elementos só pode ser deduzido a partir da leitura do todo presente na imagem, e que, segundo Koch, os planos de articulação da imagem vão de unidades mínimas distintivas até o plano do texto, mas devem ser definíveis em seu valor somente no quadro de uma única imagem.
A fotografia é ambígua: fala do passado (aconteceu) e do futuro (do passado). Expõe um fato que ainda não aconteceu: A ave teria conseguido seu intento? A imagem denuncia, mas não confirma a morte; a cena sugere, insinua, é reticente, posto que fala de um acontecimento futuro, que está prestes a acontecer. Ela nos leva a querer saber o que aconteceu depois, a saber além da cena.  

A leitura da Fotografia

Para a análise da fotografia, Kossoy me indicou o caminho a percorrer. Era importante saber a história do documento e a do fotógrafo. Colocá-lo no seu espaço e tempo para reconhecermos e entendermos suas intenções. Mas, como disse anteriormente, as emoções sentidas só fizeram sentido com a Câmara Clara de Barthes, e é através dele que fiz a leitura.
Para Barthes, reconhecer o studium é encontrar as intenções do fotógrafo, compreendê-las, porém, segundo as próprias imagens mentais do spectator.
O studium é o quadro histórico, o assunto no qual o fotógrafo investiu, tem conotação cultural, resulta num interesse amplo e eu posso ou não me identificar com ele. Por ser amplo, é revestido de generalidade e, assim, pode ser percebido do mesmo modo por um grupo de pessoas ou um corpo social. A cultura nos liga a sentimentos e valores dados pela sociedade, em determinado espaço e tempo. São emoções e sentimentos trazidos pela interação humana e projetados na interpretação da fotografia.
O studium, assim, é codificado, com significação elaborada por uma sociedade, na história, podendo ter a mesma interpretação por diferentes pessoas, que convivem naquela sociedade, naquele espaço e tempo.
Ao olharmos a fotografia, vemos a criança fraca, esquálida. Logo nos reportamos a uma das guerras civis, africanas, onde inúmeras pessoas morrem de doença e fome. Grande número de pessoas conhece as imagens, no passado, publicadas em várias ocasiões.
Enquanto o studium é cultural, o mesmo não acontece com o punctum. Este é pontual, pessoal, subjetivo.
O punctum, para mim, é a ave. Ela me fere, me transtorna. Um detalhe que não foi colocado lá, intencionalmente, ela está no campo do fotógrafo. Diz que ele estava lá, não podia deixar de fotografar o objeto parcial ao mesmo tempo em que o total, pois ele fazia parte da cena. A vidência do fotógrafo não consiste em ver, mas em estar lá. O punctum, a ave, faz com que eu pense imediatamente numa história, em indagações, para além daquilo que eu vejo: o que aconteceu depois.
O studium pode servir a várias pessoas. O punctum a uma ou poucas. Portanto, é difícil falar dele. Tem significado para alguém, cujo código pessoal vem de sua história particular. Falar do punctum é expor-se, pois, necessariamente, é falar de sentimentos pessoais. O outro entende, mas não compartilha, então, ao falar do punctum, a emoção desanda, perde-se a graça.
Para Barthes, a essência da fotografia é o Referente Fotográfico - não a coisa facultativamente real, mas a coisa necessariamente real. O que nos impressiona é a certeza de que o fato existiu no passado, uma certeza no Tempo. É uma cena de guerra que foi dada sem mediação, foi construída por inteiro. Ao olhá-la, vejo o urubu esperando a morte da menina e imediatamente penso em alguém que impeça isso, e, então, sinto a presença do fotógrafo. Sei que ele não deixou que a ave, seguindo o processo da natureza, conseguisse seu intento. A cena transcende a imagem fotográfica e é composta, então, de três elementos: o fotógrafo não é, somente, o mediador, o intermediário. A certeza de que o fato existiu no passado e a cena mostrando a solidão da criança, fizeram, da presença do fotógrafo, a salvação da menina. Penso que essa foi a razão de todos quererem saber da atitude do fotógrafo, depois de tirada a fotografia.
Este é o noema da fotografia, "isso foi", aconteceu: estava vivo, mas não está mais. O noema é intenso, pois o que vejo é a morte prenunciada: a menina morrendo de inanição. Ela me certifica que a guerra existiu, que milhões de pessoas morreram, e foi neste momento histórico, contemporâneo. E isso me foi dado não por um testemunho, mas por uma prova, conforme Barthes, "a-prova-segundo-são-tomé".
Na fotografia há dupla determinação: de realidade e de passado - a menina estava lá, e não existe mais. Há a morte dada pela essência da fotografia, o punctum, não na forma, mas no Tempo. Porém, a morte me é dada, também, pelo futuro (da menina) e pelo passado, atestado pela ave. Triplamente morte, a fotografia se torna redundante, prolixa.
Olho e me retenho nela, imóvel, angustiada. Choro a tristeza do mundo: nenhuma cultura vem me ajudar a falar desse sofrimento - nada, nela, pode transformar meu pesar em luto.  

A história da fotografia e do fotógrafo

Da fotografia:

A fotografia é de uma menina sudanesa, que estava se arrastando em direção a um posto de alimentação. Foi registrada pelo fotógrafo sul-africano Kevin Carter, em 1993.
A guerra no Sudão
O Sudão (antiga Núbia), em 1820 tornou-se colônia britânica e em 1899 foi submetido ao domínio egípcio-britânico. Em 1956 obteve a independência. Começou, no sul, a guerrilha do Exército de Libertação do Povo Sudanês (SPLA). Depois de vários golpes, em 1989 tomou o poder o general Omar al-Bashir, que instalou uma ditadura militar. Seu regime foi marcado pela intensificação dos combates e, em 1991, adotou um Código Penal baseado na lei islâmica. Os combates entre a guerrilha do SPLA e o governo islâmico provocaram o êxodo de milhares de pessoas. Cerca de 600 mil refugiados morreram de fome no sul, a 800 km de Cartum, a capital, em 1993[2].

Do fotógrafo:

Kevin Carter (1961-1994) fazia parte de um grupo de quatro fotógrafos, jovens, de classe média. Os outros três eram: Greg Marinovich, Ken Oosterbroek e João Silva, um moçambicano educado em Portugal. Tinham o apelido de The Bang Bang Club, dado pela imprensa internacional da África do Sul, pois eram destemidos e às vezes extremamente descuidados para conseguir imagens violentas da guerra[3].
A história dos quatro fotojornalistas sul-africanos foi contada no livro The Bang Bang Club[4], por Greg Marinovich, co-assinado por João Silva. Conta a saga do grupo que, diariamente, se dirigia às cidades próximas a Johanesburgo para fotografar a fase mais violenta da luta entre os partidários do ANC (African National Congress) de Nelson Mandela e os do líder zulu Buthelezi, no final do apartheid.
As imagens renderam prêmios internacionais e fama aos quatro fotógrafos, porém, com custos emocionais aos dois sobreviventes do grupo, além da morte de Ken Oosterbroek, primeiro sul-africano a ganhar um Pulitzer, ocorrida durante um dos tiroteios, à vista de seus companheiros. Ken faleceu em abril de 1994 e Kevin Carter suicidou-se aos 33 anos, em julho do mesmo ano, asfixiado com os gases do escapamento do carro.
Os longos períodos passados em situações extremas e de conflitos dificultaram o convívio social no dia-a-dia. Como conta Greg no livro: "Quando se tenta recebe-se um olhar de incompreensão ou asco. Só conseguimos falar dessas coisas entre nós". Kevin dizia que sofria de depressão e pesadelos.
Em 1993, João e Kevin foram ao Sudão cobrir o genocídio de tribos cristãs pelo governo sudanês. João já tinha percorrido a aldeia de Ayud tirando algumas fotos. Kevin percorreu a mesma aldeia e tirou a foto da menina. Disse que estava fotografando uma criança, mudou de ângulo e, de repente, viu o urubu atrás dela. Disse que tinha enxotado o abutre. João já tinha fotografado a mesma menina, mas sem a ave.
A fotografia, que foi adquirida pelo New York Times, ganhou o prêmio Pulitzer de 1994, e deu mais resultado do que qualquer outra reportagem para chamar a atenção sobre a fome no continente africano. Porém, levantou a questão que acompanhou o fotógrafo até sua morte. O que ele tinha feito para salvar a criança? Todos queriam saber, e Carter dava diferentes versões. Chegou a declarar, em uma das suas últimas entrevistas, que odiava a foto.
A respeito do tipo de trabalho que faziam em campo, Greg, no livro, faz uma reflexão sobre o assunto: "João e eu também vimos muitas crianças morrer à nossa frente, na Somália, e só fotografávamos. Tragédia e violência produzem imagens fortes. Somos pagos para isso. Mas há um preço embutido em cada imagem dessas: um pedaço da emoção, da vulnerabilidade, da empatia que nos torna humanos se perde a cada vez que acionamos o botão da câmera."

A mensagem de uma Fotografia Jornalística

Quando pensei em fazer uma análise de uma fotografia, logo veio à minha mente uma imagem que chegou a mim pelo correio eletrônico, sem legenda e nenhuma referência.  A fotografia me deixou bastante impressionada. É uma cena com dois elementos, a menina e a ave, mas, para mim, tinha todos os significados do mundo. Via a criança morrendo de inanição, só, e o urubu à sua espreita. Ela falava da morte, mas mais que isso, do descaso humano. Como podem os homens chegar a este ponto! O que me confortou, por um momento, foi a presença de uma pessoa, o fotógrafo. Ao menos ele estava ali. Queria saber a história da foto. Onde tinha acontecido, o que o fotógrafo tinha feito.  Aquela cena tinha se cristalizado no papel, gravando a realidade em dado espaço e tempo. Foi o assunto selecionado, a escolha e as ações do fotógrafo, enfim, o processo de construção da representação do fotógrafo - a primeira realidade, ou realidade interior da imagem fotográfica, a história do assunto no passado. Porém, a construção foi a partir do real; desse modo, a fotografia era um documento do real, e a imagem obtida, sua segunda realidade - o assunto representado, o conteúdo explícito da imagem fotográfica. Para decodificá-la deveria conhecer sua história, o processo de criação do fotógrafo, suas intenções. É o que nos ensina Kossoy (1999).
Quando iniciei a análise, não tinha, até aquele momento, as referências históricas da fotografia, não sabia quem era o fotógrafo. As pesquisas, até então, eram infrutíferas. O que tinha era, como receptora, uma interpretação da imagem, segundo meus códigos, minhas referências culturais.
Porém, como falar da fotografia, das emoções que tinha sentido? Foi Barthes que me ajudou a explicar as impressões causadas pela foto. A análise seria, antes de tudo, minha interação com ela, sensações sentidas como espectador segundo as referências teóricas de Barthes.