quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O discurso

A mensagem fotográfica é conotada: no nível da produção e no da recepção da imagem. Como nos diz Barthes, em A mensagem fotográfica: "A fotografia jornalística é um objeto trabalhado, escolhido, composto, construído, tratado segundo normas profissionais, estéticas ou ideológicas; por outro lado, não é apenas recebida, é lida, vinculada, pelo público que a consome, a signos, o que pressupõe código (de conotação). São estes códigos que devem ser estabelecidos".
Se é mensagem conotada, tem dois planos: o de expressão e o de conteúdo. A imagem, no nível do plano de expressão, tem , como falamos, apenas dois elementos: a criança e a ave. Porém, esses elementos, cada um deles, são fortes em si mesmos.
Numa tentativa de deciframento, isolei as unidades de articulação da imagem, no sentido de verificar a variação das leituras, com a modificação da forma. O fotógrafo João Silva já tinha fotografado a menina sozinha, porém, não tinha dado importância à foto.
O abutre é carnívoro - alimenta-se habitualmente de carniça. Essa é a proposição que retiro da imagem, considerando a ave isoladamente. Além disso, posso inferir que olha para alguma coisa em especial ou fazer considerações dela com o ambiente, pois não há outro elemento de articulação presente; posso ter o saber de sua função ecológica no mundo: limpa o meio ambiente de restos putrefatos, é de sua natureza. Saberes aprendidos que fazem parte da minha história.
Ao olhar a imagem em que há apenas a menina, o que vem à mente é que a criança está morrendo. A imagem da menina, só, sem a ave, é forte: remete-nos à fome, à miséria, à solidão. O leitor desenvolve, subjetivamente, uma empatia, um sentir pena, porém, no plano social, se distancia, justificando a cena como outras realidades, abstraindo as noções de tempo e espaço, criando uma idéia de intemporalidade e de qualquer lugar (Koury, 1995: 76).
Ao olhar a fotografia, reconheço a ave e o estado da criança, e concluo: A ave espera a criança morrer, pressentindo a morte. A relação entre eles estabelece uma sintaxe, que é lida de pronto, de imediato. A presença da ave, por outro lado, reforça o sentimento de solidão, de não ter alguém para cuidar, do descaso humano. Depois, me pergunto: O que, na criança, indica a proximidade da morte para a ave? De onde vem o seu saber?
Cada elemento é portador de um significado, porém, a conclusão só é possível dentro do contexto da imagem, em que estabelecemos a relação dos conteúdos inerentes às unidades. Não se trata de uma soma de valores, mas de uma interrelação de forças significadoras. Santaella (2001: 50) argumenta que o valor funcional dos elementos só pode ser deduzido a partir da leitura do todo presente na imagem, e que, segundo Koch, os planos de articulação da imagem vão de unidades mínimas distintivas até o plano do texto, mas devem ser definíveis em seu valor somente no quadro de uma única imagem.
A fotografia é ambígua: fala do passado (aconteceu) e do futuro (do passado). Expõe um fato que ainda não aconteceu: A ave teria conseguido seu intento? A imagem denuncia, mas não confirma a morte; a cena sugere, insinua, é reticente, posto que fala de um acontecimento futuro, que está prestes a acontecer. Ela nos leva a querer saber o que aconteceu depois, a saber além da cena.  

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